10 de junho de 2011

Estudo Introdutório às 95 Teses de Martinho Lutero*

Segundo a tradição luterana que celebra a persona Lutero (1483-1546), as “95 Teses” foram afixadas na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg em 31 de outubro de 1517. Se este ato, recorrentemente celebrado como fundador da Reforma Luterana, realmente aconteceu, não teria, em si mesmo, nada de excepcional: na verdade, isso era um modo costumeiro de se anunciar uma “disputa” ou “justa teológica” entre os doutos de Wittenberg. Portanto, não se tratava de uma ação que deveria ter uma conotação individual, visto que as disputas eram debates que envolviam professores e estudantes. Isso explica o fato de Lutero pedir para aqueles que não pudessem se fazer presentes à disputa que, ao menos, enviassem as suas opiniões por escrito para serem lidas. Afinal, segundo as regras da eloqüência, as “teses” deveriam ser vistas como “pontos a serem debatidos” em uma plenária de doutos.

Nesse sentido, trata-se de um ato público envolvendo doutos e/ou seus estudantes, como demonstra o fato de as teses terem sido escritas originalmente em latim e não em alemão (língua familiar de Lutero). Observa-se também que o tom irônico e uma certa preocupação com a métrica e a rima fazem parte do ritual de “belo discurso” (arte da retórica) – conhecimento obrigatório nas universidades de teologia e direito da época de Lutero. Portanto, ao lançar as suas “95 Teses”, Lutero tornava públicas (mas não populares) as suas idéias, com a finalidade de expor a doutos algumas questões que o incomodavam a respeito das “vendas de perdão/indulgências”, cujas contradições práticas e doutrinais, somadas à corrupção de determinados setores do clero, eram vistas por ele como uma ameaça à credibilidade da fé cristã e da Igreja de Roma. Isso significa que, ao tornar públicas as suas teses, Lutero esperava receber o apoio do papa, em vez de sua censura. No entanto, depois de novas disputas teológicas, desta vez com agentes enviados pelo Papa Leão X (1475-1521; pontificado: 1513-1521), foi redigida contra Lutero uma carta de excomunhão datada em 21 de janeiro de 1521, que ele receberia meses depois.

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Entre 1517 e 1521, Lutero fora submetido a algumas disputas teológicas – e quase metade de suas teses foi refutada pelos doutos do papa. Aos poucos, a situação fugiu dos muros da universidade, e muitas idéias de Lutero foram convenientemente distorcidas por membros da nobreza alemã, que utilizaram a “desculpa da fé” para tomar bens e terras de famílias inimigas e da própria Igreja. Imprevisivelmente, toda esta situação foi consolidando uma atmosfera de cisma religioso na Europa que estava longe das intenções de Lutero. Portanto, deve-se entender que a ação de Lutero misturou-se involuntariamente com interesses políticos e com outras tendências do debate teológico e da cultura religiosa que remontavam ao século XIII.

Ora, isso nos possibilita entender por que Lutero manifestou-se tanto contra as revoltas camponesas (marcadamente “anabatistas”) quanto contra os nobres que mesclavam seus interesses mundanos com o debate teológico que ele suscitara. Além disso, não se deve perder de vista que Lutero estava historicamente inscrito no universo sociocultural do Antigo Regime e, portanto, era muito cioso das hierarquias sociais. Por isso mesmo, criticava a nobreza e parte do clero por não darem “bom exemplo” ao explorarem os camponeses com tributações extraordinárias, pois isso apenas servia, segundo a sua opinião, para alimentar novas circunstâncias de revoltas sociais. Assim, não é paradoxal que, em 1520, ele tenha escrito o seu “Apelo à Nobreza Germânica” e, em 1525, no contexto das guerras camponesas, tenha escrito “Sobre a Autoridade Secular”, admoestando ambos os estamentos por criarem situações de instabilidade política e social.

Nestes dois escritos, Lutero define claramente o caracter secular da autoridade política como chave para se manterem equilibrados os direitos e responsabilidades que justificavam as hierarquias sociais tradicionais. Portanto, frente a um mundo que se apresentava instável e inseguro, Lutero apelava para dispositivos tradicionais como meios de restauração da segurança no mundo, mas com uma novidade doutrinal que jamais foi praticada plenamente em parte nenhuma da Europa do Antigo Regime: uma década antes de ceder ao pragmatismo dos príncipes protestantes da Liga de Smalkalde (1531-1547), quando então ratificou o princípio “cujus regio, ejus religio”, Lutero afirmava que era Deus que deveria julgar a fé individual e, portanto, nenhuma autoridade política deveria, em nome dela, causar perdas de vida e de bens entre seus súditos.

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Por fim, valeria fazer uma última indagação: Se a ação de Lutero de lançar as suas teses em 1517 não teria nada de excepcional, por que posteriormente isso foi celebrado em muitos livros didáticos de história com uma certa conotação de heroicidade ou excepcionalidade?

Em primeiro lugar, porque os desdobramentos não necessariamente luteranos de uma fé reformada ganharam avultado corpo e agentes sociais nas décadas que se seguiram a Lutero. Sem isso, não há quem celebre ou crie memória social em torno de determinado evento como “marco fundador”. Em todo caso, foi ao final do século XVII, contexto da expansão militar de Luís XIV (que revogou o Édito de Nantes em 1685) na Europa Central, que se começou a celebrar nos meios protestantes o “dia de lançamento das 95 Teses de Lutero” como um marco histórico de ruptura com Roma.

Em segundo lugar, desde meados do século XVIII, várias idéias de outros escritos de Lutero foram lidos numa chave interpretativa iluminista de progresso cultural, particularmente as implicações sociais e institucionais de sua percepção de que a fé ou a consciência religiosa não deveria ser matéria dos príncipes. Aliás, vale lembrar que Immanuel Kant (1724-1804) está inscrito na tradição luterana quando escreve o artigo “O que é Esclarecimento?”(1784), no qual define um nexo causal entre secularização, tolerância religiosa e progresso cultural.

Em terceiro lugar, é bastante significativo lembrarmos que, no último terço do século XIX, políticos e intelectuais – bem antes da sociologia de Max Weber – começaram a estabelecer um nexo causal entre “protestantismo”, “progresso capitalista” e “expansão colonial moderna”, de modo a explicar e justificar a emergência imperial da Grã-Bretanha e da Prússia em face à “decadência ibérica” e à “derrocada napoleônica”.

Cronologia:

1483, 10 de novembro: Nasce Lutero.

1509: Henrique VIII(1491-1547) torna-se rei da Inglaterra. Nasce João Calvino em 10 de julho.

1517, 31 de outubro: Lutero fixa as suas “95 Teses” na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg.

1518: Lutero recusa-se a retratar-se perante o papa Leão X(1475-1521; pontificado: 1513-1521).

1520, junho: Leão X condena 41 proposições de Lutero.

1521, 21 de janeiro: Leão X excomunga Lutero, mas levam vários meses até a ordem de excomunhão chegar à Alemanha.

1522: Lutero publica a sua advertência contra os distúrbios e publica a tradução do grego para o alemão do Novo Testamento, com gravuras de Lucas Cranach (1472-1553).

1523: Lutero publica texto que fala do direito de a comunidade de fiéis julgar toda a doutrina e nomear e demitir clérigos.

1524-1525: Revolta camponesa liderada por Thomas Müntzer (1490-1525).

1525: Lutero publica texto contra os “profetas sagrados” e contra as “revoltas camponesas”.

1528: Mandato imperial ameaça de morte os anabatistas.

1530: Carlos V (1500-1558) – rei de Espanha desde 1516 e eleito imperador Habsburgo desde 1519 – fracassa em impor uma ortodoxia religiosa ao império.

1534: Ruptura de Henrique VIII da Inglaterra com Roma, supressão dos monastérios e concessão de permissão para os padres se casarem. Na Alemanha, Lutero publica a tradução do hebreu para o alemão do Velho Testamento.

1534-1535: Anabatistas tomam o poder em Münster, mas seu “reino” é derrubado pela coligação de forças católicas e protestantes.

1536: Surge a primeira edição de “Instituições da Religião Cristã”, de João Calvino. Ocorre também a introdução da bíblia vernacular na Inglaterra.

1542: Calvino organiza o seu catecismo em Genebra.

1544: Calvino admoesta os anabatistas.

1545, 13 de dezembro: Começa o Concílio de Trento.

1546, 18 de fevereiro: Morre Lutero.

1547: Eduardo VI(1537-1553) assume o trono na Inglaterra e demonstra forte tendência calvinista.

1549: Eduardo VI lança o livro de pregações e pretende forçar a uniformidade religiosa em torno da fé reformada na Inglaterra.

1553: Morre Eduardo VI e sua irmã mais velha, Maria I(1516-1558), pretende o retorno da Inglaterra ao Catolicismo.

1558: Morre Carlos V da Espanha e Maria I da Inglaterra. Elizabeth (1533-1603) assume o trono da Inglaterra e tenta restaurar o anglicanismo de seu pai, Henrique VIII, o que significava evitar os extremos puritano(Eduardo VI) e católico(Maria I).

1560, Março: Fracasso de uma conspiração de jovens aristocratas huguenotes contra a Casa Católica do Duque de Guise na França. Primeiro édito de tolerância é editado.

1561, Setembro-Novembro: Colóquio de Poissy, mas fracassa a tentativa de restaurar a unidade entre huguenotes e católicos na França.

1562, março: Massacre dos huguenotes em Vassy comandada pela Casa Católica de Guise. Primeira Guerra Civil Religiosa na França.

1563: Em março, Catarina de Médicis(1519-1589; regente: 1560-1574) tenta por fim à guerra civil francesa com a assinatura da Paz de Amboise, que concede certo grau de tolerância para os huguenotes. Neste mesmo ano, encerra-se o Concílio de Trento.

1564, 27 de maio: Morre João Calvino. Théodore de Béze(1519-1605) sucede Calvino como líder da reforma protestante centrada em Genebra.

1572, 23-24 de agosto: Noite do Massacre de São Bartolomeu em Paris.

1598: Publicação do Édito de Nantes.

1685: Revogação do Édito de Nantes.