17 de março de 2011

Polêmica sobre A Paixão de Cristo, de Mel Gibson

Na polêmica sobre A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, o que a História e a Bíblia dizem sobre o episódio

COM EDIÇÃO DE ERNESTO BERNARDES


Durante dois milênios, filósofos e teólogos, pintores e escultores, escritores e cineastas fizeram do relato da vida de Jesus uma espécie de espelho, cada qual colocando nele um pouco da própria imagem. O filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo, não foge à regra. Focalizando a tortura física de Jesus homem, o diretor atinge os espectadores na boca do estômago, fazendo-os sair trêmulos da sala de projeção. Gibson diz que simplesmente mostra ''o que aconteceu'', usando apenas ''o que está na Bíblia''. Em termos. A fita, de estréia marcada para o fim da semana, toma liberdades e faz simplificações forçadas tanto com a narrativa dos Evangelhos quanto com as pesquisas históricas. Se o retrato do filme, porém, é tosco, o que se sabe, com algum nível de certeza, sobre os tempos e a condenação de Cristo?

Jesus nasceu, viveu e morreu num ambiente de extraordinária complexidade. Seus seguidores constituíam uma das muitas facções em que se dividira o judaísmo, submetido à enorme pressão do domínio estrangeiro. Desde o século VI a. C., babilônios, persas, gregos e romanos ocuparam sucessivamente a Palestina. Sob o jugo de Roma, no ano 37 a. C., Herodes, um aventureiro sem escrúpulos, foi proclamado rei da Judéia. Astucioso e sem freio moral, impôs sua realeza sobre um território que ia da Síria ao Egito. Entre suas grandes obras, destacou-se a reconstrução do Templo de Jerusalém, com a qual esperava conquistar a simpatia dos judeus, que o odiavam. Mas o preço desses empreendimentos foram uma opressão ilimitada e impostos astronômicos. Quando o rei morreu, no ano 4 a. C., seu território foi dividido entre três filhos igualmente despóticos. Foi nesse período conturbado que Jesus viveu. A aguda insatisfação popular gerava um clima de revolução iminente, que, na década de 60 d. C., explodiria em levantes generalizados contra a presença romana. A repressão a esse movimento culminou, em 70 d. C., com a destruição de Jerusalém pelas legiões comandadas por Tito, futuro imperador de Roma.

Séculos de domínio estrangeiro haviam produzido no judaísmo uma profunda crise de identidade. Não havia pensamento único, como o filme de Mel Gibson sugere, e numerosas facções disputavam a cena pública. No topo da pirâmide, havia os saduceus, grandes proprietários de terras e membros da elite sacerdotal. Esse grupo seguia uma política de conciliação com os dominadores romanos. O centro de sua atividade era o Templo de Jerusalém e, em matéria religiosa, aceitava apenas o que estava escrito na Torá, constituída pelos cinco primeiros livros da Bíblia. Foram eles os principais acusadores de Jesus.

Fotos: Divulgação

CALVÁRIO
Jesus permaneceu durante seis horas pregado em sua cruz
Um degrau abaixo ficava o importante grupo dos fariseus, cujo nome vem do hebraico perishut (''separação''). Eles se isolavam do resto da comunidade pelo cumprimento minucioso das regras de pureza prescritas na Torá. Vinham principalmente da classe dos artesãos e pequenos comerciantes. Nacionalistas, esperavam um Messias guerreiro que libertasse Israel da dominação romana. Participavam do Sinédrio, mas atuavam preferencialmente nas sinagogas espalhadas pelo país. Sua doutrina sobre a imortalidade da alma e a ressurreição do corpo influenciou o pensamento cristão. Outro grupo eram os Doutores da Lei (escribas). Não formavam um partido, mas gozavam de enorme autoridade por ter entre seus membros os intérpretes abalizados das Escrituras. Diferentes dos saduceus, que se prendiam à leitura literal da Torá, eles reconheciam no texto bíblico toda uma dimensão esotérica. Havia também a seita dos essênios, constituída por sacerdotes dissidentes e adversários da ordem estabelecida. Moralistas, viviam em comunidades fechadas e consideravam-se os únicos remanescentes ''puros'' de Israel. Opunham-se à propriedade privada e ao comércio. Aspirantes ao grupo deveriam passar por um período de iniciação que durava três anos e culminava no ritual do batismo. Combatiam os romanos e a elite sacerdotal, abominavam os sacrifícios praticados no Templo e esperavam o Messias para deflagrar a guerra santa que instauraria o reino dos justos. Finalmente, também na ''extrema esquerda'' daquele tempo, havia os zelotes, dissidentes radicais dos fariseus. Na maioria pequenos camponeses, eram ultranacionalistas e pretendiam expulsar pelas armas os dominadores pagãos. Eram ferozmente perseguidos pelos romanos. Entre os discípulos de Jesus, havia pelo menos dois zelotes - Simão e Judas Iscariotes. Eles e seus partidários parecem ter depositado grandes esperanças na liderança do mestre. Mas a mensagem atemporal de Jesus não coincidia com o projeto militar do grupo.
Os ''ladrões'' provavelmente também foram crucificados por subversão
Sob aguda opressão e crise de valores, as camadas mais pobres aguardavam a vinda do Messias. O termo em hebraico significa ungido e, no Antigo Testamento, designava os sumos sacerdotes e os reis, sobre cuja cabeça se derramava o óleo santo, como sinal de que haviam sido escolhidos por Deus para uma missão. Como Davi, mil anos antes, o Messias aguardado deveria libertar o país do domínio estrangeiro e restaurar uma realeza legítima em Israel. Ao iniciar sua atividade pública, Jesus foi identificado com esse personagem. Mas os desdobramentos de sua prática frustraram essa expectativa guerreira, nacionalista e monárquica. Para alguns estudiosos, essa frustração pode explicar a traição de Judas, cujo drama de consciência é retratado com propriedade em A Paixão de Cristo. Mas o filme não deixa claro que essa mesma frustração tomou conta da multidão que, dias antes, acolhera Jesus em triunfo. Seus inimigos - saduceus à frente - souberam explorá-la, para levar o homem à morte. Poucos contemporâneos de Jesus compreenderam que a revolução que ele de fato propunha era nas consciências - não uma simples mudança de governo.

Divulgação

SATÃ
No filme, uma figura andrógina
Apesar das idéias revolucionárias, Jesus jamais quis romper com a tradição judaica. Passagens dos Evangelhos o descrevem ensinando nas sinagogas e atestam que conhecia profundamente as Escrituras. Seus interlocutores o chamam de rabi, que significa mestre. Estudiosos contemporâneos sublinham que os ensinamentos de Jesus apresentam notáveis paralelos com o pensamento rabínico da época. O que motivou sua condenação foi um confronto radical com a estrutura de poder constituída em torno do Templo. Essa instituição era, então, o centro da vida econômica, política e religiosa do país. Controlava os sacrifícios diários de animais e a cobrança de impostos. Naquele tempo, numa única Páscoa judaica, foram imolados 250 mil cordeiros. Os animais sacrificados passavam por um controle de qualidade, baseado nas regras bíblicas de pureza. Isso fazia com que a maior parte daqueles trazidos pelos pequenos produtores fosse recusada. Em seu lugar, fiéis eram obrigados a comprar animais criados por grandes proprietários de terra ligados às famílias sacerdotais e oferecidos a preços exorbitantes. Durante as festas religiosas, um pombo (o animal mais barato) alcançava cem vezes o preço normal, custando o equivalente ao salário de um dia de trabalho.REPORTAGEM DE CAPA

O julgamento de Jesus

COM EDIÇÃO DE ERNESTO BERNARDES



Divulgação

MARIAS
A virgem e Madalena, no filme
Além dos sacrifícios, o Templo lucrava com os impostos - havia um cadastro de 1 milhão de contribuintes, em toda a Palestina. Os pagamentos não deveriam ser feitos na moeda local, inflacionada, mas trocados pela tetradracma tíria, moeda tão forte que não sofreu nenhuma desvalorização em 300 anos. Cunhada na cidade fenícia de Tiro, ela tinha em uma face a imagem de Melkart, deus protetor dos tirenses, e na outra a águia de Júpiter, divindade romana. Para os judeus piedosos, era um escândalo que os sacerdotes adotassem uma moeda decorada com figuras pagãs. Escandalosa também era a comissão de 8% cobrada na conversão. Por isso, ao expulsar cambistas e vendedores de animais, Jesus não afrontou um bando de camelôs - bateu de frente com a elite dominante. Aproveitando o momento em que o volúvel ânimo da multidão migrou do entusiasmo para a decepção, os principais chefes saduceus, Anás e Caifás, incitaram as massas a exigir a morte do homem que, dias antes, haviam exaltado. Para emprestar legitimidade ao processo, convocaram o Sinédrio.

Essa assembléia, além das questões legais, cuidava dos assuntos de caráter ritual. Presidida pelo sumo sacerdote, era composta de 70 membros proeminentes da sociedade. No tempo de Jesus, os saduceus tinham a maioria. O filme de Mel Gibson mostra, de forma apressada, que nem todos os membros do conselho estavam presentes à reunião que acusou Jesus e que alguns se opuseram às manipulações de Anás e Caifás. De fato, havia no Sinédrio até discípulos secretos de Jesus. Mas a própria atuação de Anás e Caifás precisa ser posta em perspectiva. Se é verdade que esses sacerdotes riquíssimos agiram em defesa de seus privilégios, é certo também que buscavam preservar as instituições nacionais em um contexto extremamente adverso. O clero conservador temia que a mobilização popular suscitada pelo Nazareno evoluísse de forma imprevisível.
Naquele período, os romanos crucificaram 10 mil pessoas
Segundo o padre Raymond Brown, autor de The Death of the Messiah (A Morte do Messias), a obra de referência sobre o assunto, não havia como condenar Jesus pelos crimes religiosos sobre os quais o conselho ainda tinha poder de execução mesmo durante o jugo romano. Jesus foi repudiado pelos sacerdotes que o acusavam de se proclamar Messias, mas isso não era crime na lei judaica. Muitos outros o fizeram naquela época (alguns até no século XX), sem sofrer represálias por isso. Ele também não foi acusado de blasfêmia (se fosse, poderia ter sido apedrejado). Os sacerdotes o acusaram perante a autoridade imperial - Pôncio Pilatos, o procurador romano. A descrição dos Evangelhos sobre o julgamento de Jesus é um dos pontos em que eles mais divergem da pesquisa histórica. Basicamente porque os textos, escritos no tempo da tensão máxima entre as correntes judaicas, alguns após a destruição de Jerusalém, procuravam ao mesmo tempo converter romanos e apresentar os dirigentes do templo da pior maneira possível. Segundo John Dominic Crossan, um dos mais importantes historiadores da religião, eles sublinham a responsabilidade de Caifás e atenuam a de Pilatos. O fato é que Jesus foi acusado de ameaçar a destruição do templo e proclamar-se ''rei dos Judeus'', o que caracterizaria subversão. Esse era um dos principais motivos para a crucificação, naquele tempo. Tanto Barrabás quanto os dois ladrões, pendurados ao lado de Cristo no Gólgota, eram provavelmente revoltosos políticos, já que o termo usado para designá-los no Evangelho significava também ''insurgente''. Historiadores calculam que, nas três décadas da vida de Jesus, os romanos crucificaram 10 mil condenados. No alto das cruzes, colocava-se o titulus, uma placa para anunciar ao povo o porquê da execução. O titulus ''Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus'' aponta para o mesmo crime, subversão.


AGONIA
No filme, Jesus carrega a cruz inteira, e não apenas o travessão, como era o costume
Os Evangelhos contam que, antes de ser crucificado, Jesus foi torturado pelos lacaios do sumo sacerdote e pelos soldados romanos. A pesquisa arqueológica trouxe importante prova a favor da idéia de que Jesus foi torturado também pelos sacerdotes, quando descobriu que a casa de Caifás em Jerusalém possuía uma masmorra particular. A flagelação, de uma brutalidade aterradora, é o centro da narrativa em A Paixão de Cristo. Pode-se questionar por que o cineasta mostra o episódio, que ocupa poucas linhas em cada Evangelho, numa seqüência horripilante de nove minutos. Mas ele basicamente bate com a História. Já a cena da crucificação se apóia em tradições do cristianismo popular sem respaldo nos Evangelhos ou na pesquisa histórica. As cruzes, sabemos hoje, não eram altas como imaginaram os pintores renascentistas. Seu poste, esculpido no tronco de uma árvore de pequeno porte, a oliveira palestinense, ficava fixo no local da execução. Cabia ao condenado transportar a barra horizontal, pesada o suficiente para produzir hematomas em suas costas. Alcançado o destino, o homem era deitado no chão e pregado à barra, que os soldados içavam. Três pregos de ferro, de 18 centímetros cada um, prendiam o condenado à cruz. Os membros superiores não eram fixados pelas mãos (se fosse assim, o peso do corpo as rasgaria) como no filme, mas pelos pulsos, entre os ossos rádio e cúbito. O terceiro prego atravessava os pés, colocados um sobre o outro, e os comprimia contra um pequeno toco preso ao poste. Os braços erguidos dificultavam a respiração; os líquidos acumulavam-se nos pulmões; a morte vinha por asfixia. Apoiado sobre o toco, o condenado podia erguer o corpo de tempos em tempos, para respirar melhor - o que prolongava sua agonia. Era comum os crucificados sobreviverem por até três dias. Jesus, debilitado pelas torturas, morreu, segundo os Evangelhos, em seis horas. Por mais que a ciência esmiuce todos os detalhes do sacrifício de Jesus, porém, há nele uma dimensão mais importante, a idéia que revolucionou a história do espírito humano. A noção de que Deus pôde sacrificar o próprio filho para redimir os homens - e que, finalmente, o amor triunfa sobre toda a violência e adversidade - é o eco da Paixão que transcende o tempo e leva cada ser humano, independentemente de religião, a admirar essa história mesmo depois de 2 mil anos.